terça-feira, 22 de outubro de 2024

Por que me abandonastes?

|| Nem um Comentario

Você já assistiu a série Good Omens? Aquela mesma do anjinho e do demônio. Nela tem um céu e um inferno, e a única diferença entre os dois é a aparência; no fundo, ambos são "repartições públicas, que existem, mas não funcionam". É hilário. (1) 

Imagine que você é um pequeno anjo no meio de burocracias cósmicas. Você tem tarefas a fazer mas o que você de fato está vendo em campo parece nunca se alinhar com as instruções dos superiores. Quem manda de fato em tudo? você nunca nem viu, e só recebe notícias das novas ordens que vão afetar totalmente seu cotidiano como se fosse muito simples. Apesar disso você tenta aproveitar os momentos no caminho, mas sem mais nem menos pode rodar numa demissão em massa (a queda de Lúcifer e sua galera). Entra era e sai era, Jesus nasce, morre e ressuscita, e o grande plano pra o qual supostamente você e todo mundo estão trabalhando parece nunca se concretizar.

Particularmente agora eu me sinto como o Crowley e o Azirafel recebendo a notícia de que o Armageddon vai acontecer. Como assim Deus quer destruir a terra, ele não sabe das pequenas maravilhas que só existem aqui? Do alto do seu trono divino ele não tem noção do quanto tudo aqui é grandioso para as pessoinhas que experimentam as dores e delícias de ser humano, mas que para Ele são como formigas. Do quanto tempo foi preciso pra chegarmos até aqui, por mais que aqui não seja o ideal. Ah, ele criou tudo lá atrás sim, mas ele não esteve aqui junto com os pecadores faz um bom tempo. E nós não estamos mais no Jardim do Éden.

É irônico que bem no início da minha relação com ele eu costumava compará-lo a um pai ausente que só paga pensão, enquanto todo o trabalho era feito pela mãe. Eu também pensava que ele era como Deus, que comandava tudo, e ela a Nossa Senhora, a quem eu podia recorrer por ter uma relação mais próxima e acessível, que conseguia apaziguar ele (a bem da verdade ela batia de frente com ele e botava nos eixos mesmo, saudade). Mas infelizmente a Compadecida morreu, e nós, os degradados filhos de Eva, ficamos desamparados.

(É por isso que todos os escritores/filósofos escreviam tanto sobre Deus? Era tudo daddy issues?)

O que teria acontecido se Deus ordenasse que Jesus viesse à terra, mas não evangelizasse ninguém, nem tivesse discíplulos, só aparecesse, deixasse o pão e o vinho representando o corpo e sangue dele no meio da rua pra quem quisesse comer e beber, e subisse aos céus de novo?

Tá, acho que fui um pouco longe demais nas alegorias religiosas. Na verdade o assunto é bem menos místico e transcendental: educação. Por todas as definições e conceituações nobres que possamos fazer, eu prefiro pensar aqui que educação (no sentido mais abrangente) é uma tarefa bem mundana. De dia a dia, de inconstâncias, mas de costume, hábito, e de socialização, porque ninguém se educa sozinho. Por isso mesmo que não se educa de verdade à distância, por procuração, e menos ainda com ausência. Pessoas não se criam como Deus criou batatas. Ou se criam, e viram uma desgraça, mas enfim.

Eu achava que ia parar com as citações religiosas, mas eis-me aqui dizendo: tire as sandálias dos pés, porque o solo que você pisa é sagrado. 

Você recai em um pensamento conservador, por mais que não explicitamente, e apesar das melhores intenções. Porque querer que as pessoas façam uma determinada coisa só porque se fazia assim antigamente, sem considerar o contexto, é conservadorismo. E querer que as pessoas desenvolvam uma certa cultura sem que você estimule, sem que trace objetivos e tente compartilhar as ferramentas que você tem... Isso não é educar. Apesar disso, você espera que basta que as pessoas tenham contato com uma forma de arte e elas vão ter a mesma experiência catártica que você teve há décadas atrás, e isso vai ser suficiente pra elas quererem buscar mais por conta própria. Um típico traço das suas leituras impressionistas, românticas até, posso dizer. Só vai continuar não acontecendo, até você mandar outro dilúvio pra zerar a Terra e tentar fazer de novo do mesmo jeito querendo um resultado diferente.

Se parece muito ousada a autoridade com que eu faço certas afirmações, principalmente dirigidas a alguém infinitamente mais experiente do que eu, pelo menos eu posso dizer que a autoridade não é minha, e sim emprestada, e eu estou me apropriando de gente mais sábia. Uma vez uma mulher sábia disse que "nós da docência temos que estar sempre nos olhando", e isso às vezes parece uma bênção e uma maldição, mas não pode ser pior do que a cegueira de olhar e não ver. 

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(1) Acho interessantíssimo a representação do pós vida como um ambiente de trabalho, assim como em helluva boss. Definitivamente um sintoma dos nossos tempos... 

domingo, 6 de outubro de 2024

Essa não é uma resenha, pt. 2

|| 2 comentários
    Ultimamente além do mangá que eu estou lendo devagar e sempre, Monster, eu de vez em quando tenho me divertido explorando o MyAnimeList, vendo os mais variados títulos e suas diversidades de arte/traço, temáticas e ambientação, e também fazendo uma pequena listinha. De certa forma é um eco do meu eu do passado, usuário assíduo do Skoob, que tinha favoritos, listas de quero ler, e que dava estrelas pros livros. Agora eu lembrei que muito tempo atrás, provavelmente em algum momento de 2013 ou 14, eu já tive um blog de resenhas de livros. Não durou muito tempo e eu não sei porque parei de fazer também.

    Ok, após uma breve pesquisada eu consegui achar o meu antigo blog, que como eu desconfiava nunca tinha sido deletado, só abandonado. Pelo que eu tenho visto essa é uma prática comum e de vez em quando você topa algum blog que o último posto foi em 2010, 2016, 2021... Acho que eu abandonei porque eu queria uma frequência de postagens mais alta, sendo que eu não lia um livro toda semana; eu desconfio disso porque existe uma série de postagens (com apenas 2) em que eu postei top 10 livros relacionados a alguma coisa, como morte. O mais engraçado é que a maioria dos livros que eu reuni, eu não tinha lido... Qual o sentido de rankear eles então? Eu não faço a menor ideia. Eu tava atirando pra todo lado pra produzir conteúdo e naquela época não tinha como fazer dancinha. Tem também um top de personagens coadjuvantes, pelo menos todos são de livros que eu tinha lido (na minha concepção da época do que era ter lido). 
    Outro tipo de post são as resenhas, e gente, que cringe... Acho que é mais fácil fazer as pazes com sua criança interior do que com seu adolescente interior. É muito, muito interessante perceber como eu era um tipo de leitor, ou melhor, consumidor de livros, bem típico da geração, e moldado por tendências que eu vejo que hoje em dia só se acentuaram entre consumidores de livros infantojuvenis e teens (ou "adultos", vulgo livros com cenas sexuais).
    Primeiro que o meu universo era extremamente reduzido, apesar de na época eu achar que era grande. O que aconteceu era que eu tinha lido o mesmo livro várias vezes diferentes escrito por autores diferentes, com pequenos ajustes na receita. Não só isso mas as minhas referências também, porque até os exemplos que eu peguei do que eu não tinha lido eram de uma vertente bem específica de livros famosos no Skoob na época. Sim, antes do booktok e até do booktube nós tivemos ele. Sabe aquela fase em que você acha que atingiu um grande marco ao ler A revolução dos bichos, esse livro super importante, profundo e necessário... Então, era mais ou menos esse naipe.
    O último post do blog é de dicas pra ler livros em inglês e o que tem lá é o oposto de tudo que eu diria hoje. Fora isso, os outros posts são resenhas de livros que eu estava lendo na época (os dois últimos em inglês); talvez por eu passar bem mais tempo pra ler eles, eu parei de postar no blog. Tem uma coisa nas resenhas que me incomoda muito, a redação delas em si até que é okay, e tem alguns comentários falando que a minha escrita é boa, é só que não tem conteúdo nenhum.
    Quer dizer, ter tem, tem a premissa e sinopse dos livros mas lendo agora eu tive a sensação de que parecia uma publicidade, e eu nem me dava conta, sendo que não fugia do padrão de resenhas difundido na época (e até hoje em dia) nesses canais literários. Meio que você tem que falar sobre o livro sem realmente falar sobre ele, já que não pode dar spoilers consideráveis, ou mesmo que dê, seus comentários tem que ser mais pontuais e geralmente você iria falar sobre a surpresa que certo acontecimento te causou ou qual ser personagem preferido... Não tem realmente muito desenvolvimento, e essa é a proposta do gênero, afinal, resenha é diferente de análise. Por mais que a função da resenha seja falar sobre um texto pra alguém que ainda não leu, se tornou muito mais uma forma de divulgação gratuita feita por várias pessoas na internet em benefício das editoras dos livros do momento, sem nem elas perceberem isso. É fascinante perceber essas coisas com o distanciamento de alguns anos agora.
    Além disso, os próprios livros também não eram complexos assim que rendessem análises individuais. Eu acho sim que você pode fazer análises ricas de um objeto pobre, mas aí você tem que ter no mínimo um contexto, uma bagagem. Eu não conseguia perceber os livros que eu lia naquela época como um nicho, ou como fruto de um país e uma época, porque quando tudo que você consome é isso, lógico que você não vai achar que é um nicho. É tipo fãs da Marvel que desprezam filmes iranianos que só existem na cabeça deles e não acham que estão em um nicho também. Então por mais que em tese nada impedisse a mim ou a ninguém de comentar sobre os livros de outra forma, não tinha bagagem mesmo pra perceber que tava faltando, e ficava nesse ciclo.
    E por falar em ciclo... eu pensei imediatamente nesse texto (e em terminá-lo, ha) quando vi um tiktok de uma moça falando como ela percebia que algumas leituras emburreciam ela. Ela falava que basicamente ler livros da Collen Hoover deixou ela travada pra livros mais densos, que ela gostava de ler antes, e que agora pretende balancear os dois tipos de leitura. O mais interessante foi ver os comentários pedindo dicas de quais “clássicos” ler, algo que é extremamente comum de ver nesse tipo de conversa (além das pessoas xingando o Machado de Assis sem ele merecer).
    No meu caso, mesmo que o tipo de livro que eu lia mudasse, demorou um bom tempo pra o tipo de leitura que eu fazia mudar. O que eu queria que as pessoas pensassem era que simplesmente ir ler um livro mais antigo sem nenhum interesse específico, direcionamento ou contexto sobre aquilo quase nunca é uma boa ideia. Porque você acha que coisas boas de verdade não precisam de contexto pra serem entendidas, mas o que você não sabe é que em 2008, Kegin Feige lançou o filme do homem de ferro, e então depois disso os super heróis estavam em todas as coleções... Seu filme foi escolhido pra você pelas pessoas dessa sala

    Enfim, uma experiência muito engraçada de leituras mais recentes de livros “clássicos” (dando como exemplo O Corcuda de Notre Dame) é perceber como o “enredo”, ou a intriga, se formos utilizar um termo mais técnico, na verdade é uma parte muito superficial do conteúdo do livro, principalmente nesse livro em específico. Simplesmente contar a história do que acontece não faz justiça, porque existem milhares de coisas não-essenciais ao enredo que compõem o que aquele livro é, e isso é muito mais complexo e difícil até do que construir um enredo, se eu arrisco dizer. Não consigo nem formular como é essa sensação de você estar lendo algo em que o autor não está só te contando uma história, mas ele tá reformulando a sua visão e experiência do mundo ao seu redor através desse mini mundo que ele criou. 

    Acho que comecei a entrar em devaneios então vou parar por aqui. Não é bem uma conclusão porque parece que eu tô o tempo todo escrevendo sobre isso... Eu acho que todas essas coisas são absolutamente desimportantes, mas são coisas que eu vivi, então pra alguma coisa essas vivências tem que servir.