Você já assistiu a série Good Omens? Aquela mesma do anjinho e do demônio. Nela tem um céu e um inferno, e a única diferença entre os dois é a aparência; no fundo, ambos são "repartições públicas, que existem, mas não funcionam". É hilário. (1)
Imagine que você é um pequeno anjo no meio de burocracias cósmicas. Você tem tarefas a fazer mas o que você de fato está vendo em campo parece nunca se alinhar com as instruções dos superiores. Quem manda de fato em tudo? você nunca nem viu, e só recebe notícias das novas ordens que vão afetar totalmente seu cotidiano como se fosse muito simples. Apesar disso você tenta aproveitar os momentos no caminho, mas sem mais nem menos pode rodar numa demissão em massa (a queda de Lúcifer e sua galera). Entra era e sai era, Jesus nasce, morre e ressuscita, e o grande plano pra o qual supostamente você e todo mundo estão trabalhando parece nunca se concretizar.
Particularmente agora eu me sinto como o Crowley e o Azirafel recebendo a notícia de que o Armageddon vai acontecer. Como assim Deus quer destruir a terra, ele não sabe das pequenas maravilhas que só existem aqui? Do alto do seu trono divino ele não tem noção do quanto tudo aqui é grandioso para as pessoinhas que experimentam as dores e delícias de ser humano, mas que para Ele são como formigas. Do quanto tempo foi preciso pra chegarmos até aqui, por mais que aqui não seja o ideal. Ah, ele criou tudo lá atrás sim, mas ele não esteve aqui junto com os pecadores faz um bom tempo. E nós não estamos mais no Jardim do Éden.
É irônico que bem no início da minha relação com ele eu costumava compará-lo a um pai ausente que só paga pensão, enquanto todo o trabalho era feito pela mãe. Eu também pensava que ele era como Deus, que comandava tudo, e ela a Nossa Senhora, a quem eu podia recorrer por ter uma relação mais próxima e acessível, que conseguia apaziguar ele (a bem da verdade ela batia de frente com ele e botava nos eixos mesmo, saudade). Mas infelizmente a Compadecida morreu, e nós, os degradados filhos de Eva, ficamos desamparados.
(É por isso que todos os escritores/filósofos escreviam tanto sobre Deus? Era tudo daddy issues?)
O que teria acontecido se Deus ordenasse que Jesus viesse à terra, mas não evangelizasse ninguém, nem tivesse discíplulos, só aparecesse, deixasse o pão e o vinho representando o corpo e sangue dele no meio da rua pra quem quisesse comer e beber, e subisse aos céus de novo?
Tá, acho que fui um pouco longe demais nas alegorias religiosas. Na verdade o assunto é bem menos místico e transcendental: educação. Por todas as definições e conceituações nobres que possamos fazer, eu prefiro pensar aqui que educação (no sentido mais abrangente) é uma tarefa bem mundana. De dia a dia, de inconstâncias, mas de costume, hábito, e de socialização, porque ninguém se educa sozinho. Por isso mesmo que não se educa de verdade à distância, por procuração, e menos ainda com ausência. Pessoas não se criam como Deus criou batatas. Ou se criam, e viram uma desgraça, mas enfim.
Eu achava que ia parar com as citações religiosas, mas eis-me aqui dizendo: tire as sandálias dos pés, porque o solo que você pisa é sagrado.
Você recai em um pensamento conservador, por mais que não explicitamente, e apesar das melhores intenções. Porque querer que as pessoas façam uma determinada coisa só porque se fazia assim antigamente, sem considerar o contexto, é conservadorismo. E querer que as pessoas desenvolvam uma certa cultura sem que você estimule, sem que trace objetivos e tente compartilhar as ferramentas que você tem... Isso não é educar. Apesar disso, você espera que basta que as pessoas tenham contato com uma forma de arte e elas vão ter a mesma experiência catártica que você teve há décadas atrás, e isso vai ser suficiente pra elas quererem buscar mais por conta própria. Um típico traço das suas leituras impressionistas, românticas até, posso dizer. Só vai continuar não acontecendo, até você mandar outro dilúvio pra zerar a Terra e tentar fazer de novo do mesmo jeito querendo um resultado diferente.
Se parece muito ousada a autoridade com que eu faço certas afirmações, principalmente dirigidas a alguém infinitamente mais experiente do que eu, pelo menos eu posso dizer que a autoridade não é minha, e sim emprestada, e eu estou me apropriando de gente mais sábia. Uma vez uma mulher sábia disse que "nós da docência temos que estar sempre nos olhando", e isso às vezes parece uma bênção e uma maldição, mas não pode ser pior do que a cegueira de olhar e não ver.
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(1) Acho interessantíssimo a representação do pós vida como um ambiente de trabalho, assim como em helluva boss. Definitivamente um sintoma dos nossos tempos...