Eu li um mangá bem interessante graças a um texto de blog (temos um padrão aqui?). Aproveitando que eu estou leitor de mangá recentemente, e gostando bastante... O texto comentava algumas obras sobre idosos em comparação com um tipo de conto folclórico japonês chamado literalmente "jogar idosos fora". O mangá em questão é Tempest (2018), uma one-shot do Asano Inio (essa é a única obra que eu já li dele).
A verdade é que a motivação desse texto começou com o grande espelho mágico (algoritmo do TikTok) me revelando o vídeo de uma fã assistindo o filme Feios, adaptação que devia ter saído há no mínimo 10 anos de uma série de livros lá de 2003... E enquanto eu lia o mangá eu pensava em como ele tem coisas que nós, fãs desse tipo de livro, achávamos que eles tinham. Então eu resolvi escrever não sobre o mangá em si, mas uma tentativa de comparação com o gênero de livros "distópico adolescente" que bombou no início da década de 2010. Você está pronto pra uma viagem no túnel do tempo?
Nas primeiras páginas de Tempest tem um discurso de um primeiro ministro explicando a nova legislação, de que a partir de uma certa idade os senior citizens (idosos) precisarão entregar seus cartões de direitos humanos e ir morar em uma instituição criada pra “cuidar” deles. Existe uma série de explicações burocráticas e termos introduzidos pra maquiar a realidade de que basicamente estão forçando os idosos a morrer. Bom, forçando não, porque isso é coisa de ditadura, estão dando a eles três opções de escolha em que apenas uma (o suicídio) é viável, inclusive com benefícios financeiros pra isso. As outras opções consistem em morrer de qualquer jeito, mas de forma bem mais humilhante e você não vai ganhar nada a mais por isso, a não ser alguns anos de vida, olha só. Essa sim é uma configuração digna das nossas democracias, e por causa disso eu achei esse mangá tão interessante: é extremamente familiar, tendo vivido no Brasil cada vez mais neoliberal dos últimos anos.
Paralelo às falas do primeiro ministro, o leitor acompanha um personagem que está estudando pra fazer um teste. Como ele não quer usar a opção de suicídio assistido oferecida da instituição, ele e alguns gatos pingados resolvem fazer o teste que consiste em 500 questões, e precisa ser respondido perfeitamente pra passar. Caso passem, eles voltam pra sociedade com seus cartões de direitos humanos. Caso não, que é o que acontece na história, eles voltam pra sociedade (leia-se: são expulsos do lugar sem nem as roupas do corpo) sem direitos humanos. Tudo dentro da legalidade e com livre opção de escolha, amém.
Dá pra ver também um pouco do cotidiano dessa instituição e como ela é condescendente com os residentes. Instrutores fazem rotinas de exercícios que lembram ginástica laboral e fazem parecer que os idosos ainda precisam produzir, mesmo estando teoricamente “aposentados”. Professores mais jovens ministram aulas sobre “educadamente recusar” caso alguém mais jovem te ofereça o assento, porque agora a prioridade é a juventude. Eles são o tempo todo inferiorizados, mas com uma camada extremamente amigável por cima, que torna tudo ainda pior.
O trecho de uma idol adolescente falando na televisão sobre ter dado a luz ao ser terceiro filho com 17 anos é algo que eu penso que uma hora vai acontecer (idols sendo usados pra promover natalidade)... Mais do que isso, é um ponto muito bem colocado de construção de mundo; desde o início dá pra entender o motivo da eliminação dos idosos, mas nesse momento você tem um exemplo real de como aquilo está afetando outras partes da sociedade; meninas estão sendo estimuladas (forçadas) a dar a luz na adolescência, agora tem creches em todo lugar. O mercado idol é um reflexo disso, ele também serve como um estimulante e uma opção de escape, oferecendo uma realidade alternativa e mais bonita, ao mesmo tempo que também exaltam o patriotismo japonês. Nas poucas cenas em que vemos do “mundo real” fora da instituição ou da TV, as pessoas estão reclamando dos trens estarem paralisados de novo e que algum “idoso tóxico” deve ter se jogado nos trilhos. Como vimos na pandemia, a economia não pode parar.
Depois de ser expulso da instituição e se encontrar com um grupo de idosos pelados assim como ele (as roupas pertencem ao local, mais um ponto da humilhação), o nosso protagonista vaga pela cidade quase como um leproso, antes de ser morto por um “robô”. Morto não, abatido (put down), já que ele não tem mais direitos humanos. A cereja do bolo é descobrir que esse robô é outra idosa, a ex-mulher dele, que conseguiu passar no teste e foi reintegrada à sociedade como cidadã produtiva. Antes mesmo do boom dos NFTs e da inteligência artificial o autor já tinha sacado que essas supostas revoluções tecnológicas são gambiarras que disfarçam muito trabalho humano exploratório, e só servem pra atender aos interesses dos super-ricos.
Pra mim esse mangá se encaixa muito bem na categoria literária de conto; é uma história curta, direta, com um desenrolar bem preciso pra entregar o argumento que ela quer passar. Mas nem por isso ela deixa de ser complexa, minunciosa e bem construída. Agora vamos voltar mais atrás...
A série Feios se passa num futuro "pós-escassez" (Pós-escassez é uma forma alternativa de economia ou engenharia social, em que bens, serviços e informação são universalmente acessíveis, segundo a Wikipédia) em que as crianças de adolescentes são chamadas de Feios, e aí aos 16 anos elas passam por uma série de cirurgias e passam a se chamar Perfeitos, e então a única ocupação deles é ir em festas. O grande plot twist é que a cirurgia também mexe com o cérebro, e elas são feitas pelo governo pra deixar as pessoas mais dóceis. Tipo assim, eu entendo que esse livro saiu no auge da ascensão da Britney e da Paris Hilton e ele quis fazer uma grande crítica contra plásticas e o padrão da magreza, mas... parece meio incompleto, pra não dizer perda de tempo, falar sobre padrões de beleza sem falar sobre os motivos pelos quais eles existem, e esses motivos sempre são econômicos e sociais de um jeito ou de outro. Nesse universo não existe ninguém lucrando com essas cirurgias, as mulheres não parecem ser mais afetadas do que os homens, também não existem mais diferenças raciais... ah, senta lá, Cláudia.
A situação aleatória sempre é desafiada por uma personagem sem sal que vai conseguir mudar o destino do país com base no poder do romance. Ah, e é quase que obrigatório ter algum tipo de ritual de passagem que vai acontecer na adolescência ou quando os personagens completarem 18 anos e que vai determinar o papel deles na sociedade. Esse evento geralmente serve de catapulta pra narrativa e às vezes também representa vagamente o vestibular, e você leitor adolescente vai achar essa comparação um grande mousse.
Falando de forma mais ampla, o grande defeito que eu enxergo em todas essas obras ocidentais, inclusive as antigas e aclamadas, é que o o pior que elas enxergam na sociedade se resume a um governo malvadão, de forma aleatória e sem muita verossimilhança... parece algo saído diretamente de uma caricatura dos anos 80 contra a União Soviética. Parece que tem uma confusão básica entre governo e os detentores da riqueza e do poder. Nada mais americano. Outra coisa complicada é que os livros sempre se passam nos Estados Unidos, só que de uma forma que parece que esse foi o único país que sobrou no mundo, e nenhum livro parece saber ou se perguntar o que realmente seria dos Estados Unidos sem a dominação que eles exercem sobre outros países. Talvez a mensagem desses livros pra um leitor americano seja: é melhor a gente bombardear outros países, porque se não tiver mais ninguém pra oprimir no futuro, os oprimidos vão ser vocês.
Enfim, não que eu tenha grandes conhecimentos de Política ou História, então tudo isso foi um grande “eu só acho engraçado que...”. Em relação aos livros que eu mencionei, é óbvio que o elefante na sala é esse: o principal objetivo deles é entreter e eles não são tão profundos assim. E digo isso não como um escudo pra críticas mas reafirmando a possibilidade de criticarmos sim, mesmo considerando a função e público alvo. Porque com certeza até hoje tem gente achando certas coisas um grande mousse, como eu já achei lá atrás, e aí surgiu essa onda de ai deixe as pessoas lerem o que elas quiserem, nem tudo precisa ser tão profundo assim pra piorar tudo. Tudo bem minha filha, se você quer passar o resto da vida lendo coisas que parece que saíram da cabeça do Luciano Huck é uma escolha sua.[3] Eu realmente tenho uma implicância forte com praticamente tudo relacionado à personalidade booktoker/leitora de internet, o tipo de implicância de quando vivenciou alguma coisa na pele. Olha aqui onde eu tô pisando, é o meu local de fala.
E falando nisso, enquanto escrevia esse texto lembrei de uma outra faceta da minha personalidade leitora teen, o meu blog de resenhas, então vou explorar um pouco mais dela numa continuação desse texto... Que bom que você já encarou sua criança interior, mas e o adolescente interior?
Notas
[1] O mais engraçado é que ao contrário do que todos os canais literários da época diziam, e que todo leitor que se prezasse repetia com ardor, eu acho que a fonte mais importante pra Jogos Vorazes não é 1984 ou Admirável mundo novo, e sim Crepúsculo. Triângulos amorosos vendem...
[2] Uma vez eu achei uma conta no Tiktok só voltada pra esse tipo de livro dessa época, eu realmente preciso procurar de novo
[3] Por outro lado, você pode sim fazer leituras ricas de objetos com pouca complexidade e vice-versa, mas isso já é assunto pra outra conversa. Além do mais, um sommelier pode fazer uma degustação de suco Kapo mas você não vira sommelier fazendo só degustação de suco Kapo.
