terça-feira, 14 de outubro de 2025

Era uma vez...

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Reflexões sobre a recepção do álbum The Life of a Showgirl a partir de outras coisas melhores e mais interessantes que o álbum em si

Uma amiga me disse que quanto mais a gente cria recursos e personagens pra escrever, mais se torna autobiográfico, e eu concordo. Como agora eu tô basicamente de cama e impedido de me sentar direito ou fazer qualquer outra atividade, minha mente tá viajando pra lugares distantes, pra eu me distrair do agora.


Once upon a time, there was a girl

She lived in the land of never-never

Where everything real is unreal

And only fairy tales come true

- (Theme) Once Upon a Time - Donna Summer

Eu li recentemente que tem certas coisas da realidade que a gente só consegue enxergar através de espelhos, e a fantasia é um desses espelhos. Se a arte é o espelho difuso que a gente tem pra enxergar certas coisas, a indústria de produção em massa é um vitral, um mosaico ou qualquer coisa milhões de vezes mais fraturada e opaca que quer capturar  e distorcer nossa atenção a todo custo. Pense no filme O Mágico de Oz, com os sets e figurinos que saltam aos olhos e quase dão uma dor de cabeça, os sapatinhos vermelhos, a estrada dos tijolos amarelos, a cidade Esmeralda... É interessante que existiram interpretações muito diferentes e até opostas sobre a suposta mensagem política do livro e do filme. Afinal, quando você olha pra um espelho, tudo que você vê é reflexo, projeção. Isso significa que a obra não tem mensagem nenhuma? Não - mais sobre isso daqui a pouco. Mas ainda assim eu acho que vale a pena falar sobre essas coisas que talvez sejam meros jogos de luz, porque talvez as coisas mais bestas, divertidas ou ambíguas são as que melhor revelam a cultura que as produziu. Não a beleza de um vitral, mas a transparência de um prisma; vazio sim, mas útil pra vermos quais são as luzes que brilham e quais se apagam em cada época.

    É mais ou menos assim que eu quero olhar pra esse novo álbum da Taylor. Eu sinceramente tô amando acompanhar esse ciclo e a recepção das pessoas. Estão surgindo subgrupos e narrativas conflitantes:  tem fã antigo detestando, tem fãs falando que ela decaiu em relação aos últimos álbuns, tem gente falando que é tudo uma sátira e as letras cringe são auto-conscientes... sinceramente parece uma seita que acabou de perder um líder, e pra muita gente (inclusive eu) foi um pouco confuso por que justamente agora uma pequena parte da fã base dela pareceu "acordar". Antes que você ache que isso é hate, na verdade tá mais pra o contrário... esse tanto de dedicação só pode ser devoção, talvez até amor, o tanto de energia que eu tenho dedicado a ela ou por causa dela. Por ora, vamos esquecer todas as críticas e falar sobre uma coisa boa que esse álbum me proporcionou: assistir o filme Showgirls (1995).


    A saga da gata borralheira que vira Cinderela (aqui a fada madrinha dela até é costureira), só que misturado com Doutor Fausto, então ela vai ter que entregar a própria alma ao diabo e descobrir que você tem que ter cuidado com o que deseja. Eu amo, amo esse tipo de narrativa e aqui não foi diferente. Tem um momento que a protagonista (Nomi) é visitada pelo chefe e a estrela do antigo clube de strip onde trabalhava, que disseram que ela ia voltar em duas semanas quando se demitiu pra ser uma dançarina de verdade. Você percebe que aos olhos deles, ela finalmente escapou, ela é a uma em um milhão que vai conseguir ser uma estrela, e eles tão quase como pais orgulhosos. Esse encontro é uma despedida, apesar de existir uma familiaridade ali, quase um carinho, a Nomi sabe que não pode voltar atrás. Mesmo estando descontente com a realidade da carreira de dançarina, o único caminho é pra cima; no início ela tinha sido avisada que ser stripper é muito mais "honesto", porque eles querem peitos e bunda e é isso que você dá pra eles, ao contrário dos clubes de "dança" em que eles fingem que querem outra coisa mas você ainda tem que mostrar peitos e bunda (Anora saiu desse diálogo inclusive). James, o cara que diz isso, é verdadeiro com a Nomi nesse quesito, e assim como Molly (a amiga fada madrinha) são os únicos personagem que tem alguma integridade, e nenhum dos dois acaba bem. Não podia ser diferente nesse mundo capitalista.

Acho que esse filme é muito mais sobre esse mundo que exige que as pessoas sejam inescrupulosas, cruéis e egoístas, do que se os personagens de fato são assim ou não. Até porque um dos pontos do filme é justamente que milhões de garotas se matariam por esse emprego, e só chega no topo quem tá disposto a se vender.  Tem um momento que Al, do clube de strip, está apresentando um novata pras outras strippers. Ele batiza ela de Hope, e corrige quando ela diz que o nome real dela é Penny: "They don't wanna fuck a Penny, they wanna fuck a Heather, or a ... or a Hope." Há um trocadilho aí que eu não percebi na hora.. Eles não querem transar com uma Penny (centavo), eles querem transar com uma Hope (esperança). Ele está falando sobre os clientes do clube, ou sobre todo mundo nesse universo, ou sobre nós, os próprios espectadores?  

Esse filme tem uma fórmula, você sabe exatamente o que vai acontecer e como vai terminar assim que começa a assistir, e esse foi motivo de crítica na época que o filme saiu. Pra mim é uma das maiores qualidades. Sim, é formulaico, exagerado, talvez até apelativo, mas eu vejo tudo isso como simbólico, então não cabe falar que tal coisa é irreal ou absurda. É uma história; não a toa o filme permanece sendo falado e reavaliado até hoje. Lembra dos jogos de espelhos? Eles não são a forma como a gente vê só a ficção, mas a própria realidade à nossa volta. Todo conto de fadas precisa de um vilão, e pra cada princesa inocente existe uma bruxa má e invejosa, talvez até verde.

    Imagina quão ridículo seria a internet inteira comentar por uma semana que a Coca Cola lançou uma publicidade detonando sei lá, o Guaraná Antarctica. E aí todo mundo ia falar que é Porque o Guaraná Antartica ja tinha lançado uma música mencionando a Coca Cola, e que também é amigo do Guaravita, que agora está namorando com a Pepsi, ex da Coca; enfim, você entendeu. São, marcas, não pessoas. E ainda assim todo mundo comenta apaixonadamente sobre em um nível muito pessoal: Taylor ficou ofendida, Charli deve ter falado dela pelas costas, Taylor levou ghosting do Matty Healy, ela queria entrar no grupinho de artistas cool e não foi aceita... Eu nem acho que a música é pra Charli em si, mas a Taylor sabia que era assim que a música ia ser lida, independentemente da veracidade ou não dos fatos pessoais por trás. Porque a realidade não vende, não cativa; símbolos, sim.

    Então o álbum é uma exploração intencional das contradições e hipocrisias do público perante seus ídolos? Não, acho que isso é muito mais as pessoas tentando encontrar um sentido em um evento tão dominante da cultura atual, como quem tentou enxergar apoio ou crítica ao sonho americano e a industrialização em O mágico de Oz. O álbum poderia ter qualquer outro título, estética e "conceito", com as mesmas músicas (muitas delas imitações menos interessantes de músicas anteriores da artista), que os fãs iriam fingir que existem outros significados do mesmo jeito. Mas aí novamente, só porque o álbum claramente não tem conteúdo, isso quer dizer que ele não tem mensagem alguma? Pelo contrário, o álbum é um reposicionamento de imagem.

Eu ingenuamente olhando mais pras coisas do que pros símbolos, via a Taylor como uma mulher adulta, bem sucedida, com uma mente extremamente empreendedora, e muitas outras características que descrevem ela como uma pessoa desejável (além de ser branca e loira e tudo mais). Mas não era esse o símbolo. O símbolo é uma jovem desajustada, mãe de gatos e que acompanha blogs de receita em vez de ir pra baladas, a menina que era zuada ou excluída pelas garotas populares (outras brancas e loiras), que tem um coração doce mas é sempre prejudicada pelos homens. Ela pode até fazer sexo na vida pessoal dela, mas nao só ela nunca abordou isso diretamente nas músicas até então, como sexo não faz parte do que ela simboliza, por isso tem aqueles vídeos de fãs reagindo à música que ela fala sobre o pau do namorado e ficando igual uma turma da quinta série em aula de biologia quando fala de genitais. Todas essas pessoas (99% mulheres) são virjonas ou conservadoras? Também não, mas a marca Taylor, o signo-Taylor não é a forma como elas acessam esse lado da identidade delas (se acessam), por isso existe um choque.

Os fãs são simplesmente cegos pra não perceberem essas discrepâncias óbvias entre vida pessoal e imagem pública? Não sei. Não é a Virgínia que representa todas as recatadas e devotadas mães de família brasileiras? Ela que não é estranha a vestiários de DM's de jogadores e futebol, e alguns até poderiam dizer que ela foi e ainda é um exemplar moderno de uma profissão bem, bem antiga. Mesma coisa da atual acompanhante de um certo ex presidente, amada nas igrejas evangélicas. Parece que contradição entre realidade e discurso/marca não só é óbvio, é necessário, duh. Lerdice minha. Como disse a estrela Cristal em Showgirls, todo mundo aqui é puta, e acredito que ela estava se referindo às dançarinas, mas na verdade isso se aplica a todo mundo  mesmo em qualquer indústria.

    A imagem da Nomi no final do filme com sua maletinha pedindo carona  me fez lembrar que fora a lista de filmes que eu tinha relacionado com essa narrativa de Showgirls (Chicago, Helter Skelter, A Substância e alguns outros), tinha uma outra história de uma personagem indo pra uma cidade maravilhosa e descobrindo que lá as coisas não eram bem assim. Isso mesmo, estamos falando de Wicked. E na verdade podia até se referir ao Mágico de Oz original também, mas aí Wicked é um olhar pra o que existe por baixo da "história bobinha" (que nós amamos) de O Mágico de Oz, porque pelo ponto de vista da Dorothy ela cai na lábia de um coach que tava sendo líder de um regime autoritário. E o que isso tem a ver com a Taylor? Ora, toda Cidade Esmeralda precisa de uma Glinda.   

Eu e meus amigos costumávamos jogar um jogo - escolher uma década que gostaríamos de viver
Eu diria que os anos 1930, mas sem os nazistas

    Eu adorei descobrir que tem uma nova produção não-réplica de Wicked na Áustria em que os figurinos e cenários são inspirados muito nos anos 1930 e 40. Mais direto do que isso, impossível; e ainda assim adorei essa escolha por destacar tanto os elementos políticos da peça, que nem por isso deixa de ser uma história clássica, formulaica, tirada de outra história clássica e formulaica. Tudo é política, menos a política, que é entretenimento. Na imagem acima: peguem essa loirinha bonitinha, casem com um Jurandir qualquer e façam ela se tornar o modelo de cidadão ideal, a porta voz da nova era em que qualquer um que não concorde com as decisões arbitrárias do líder supremo vai ser perseguido e eliminado (os capangas do Mágico usam braçadeiras verdes idênticas às vermelhas com suástica dos oficiais da SS). 
    O maior talento de Glinda desde o começo é saber o que esperam dela e como tirar vantagem disso. Ela sabe que fazendo o jogo de quem está no poder ela vai ser aplaudida e premiada. Até porque ela não tem os dotes mágicos de Elphaba e talvez não conseguiria bater de frente com alguém nem se quisesse. Isso torna ela mais burra ou mais inteligente? Ela é o exemplo mor do que acontece com todos os outros personagens insatisfeitos durante a peça; mais cedo ou mais tarde, todos eles optam pela escolha mais conveniente. Eles podem ser culpados por isso? Não sei. 
    O musical mostra que não é uma escolha fácil também, porque Glinda chega longe, mas chega vazia. Quando canta que os malvados morrem sozinhos, está também falando sobre ela mesma, que sacrificou até a empatia que tinha pelos Animais e por Elphaba pra se tornar Glinda, a Boa. Mas no grande esquema das coisas, essa culpa/amargura/arrependimento serve pra alguma coisa? Vai desfazer o mal que ela ajudou a perpetuar? Algo me diz que se vivesse na nossa realidade, Glinda poderia lançar um documentário na Netflix mostrando como foi pressionada a se manter neutra politicamente, chorando porque não queria se mais apenas uma mocinha privilegiada. Ela podia lançar vídeos apoiando os Munchkins da forma mais safe e corporativista possível, anos depois ela poderia fazer uma turnê pelos quatro cantos de Oz (uma das maiores turnês da história certamente) e lançar um filme da turnê, e um álbum que ela escreveu nos bastidores, e 500 versões diferentes desse álbum, e um documentário da turnê... ela ia lucrar muito.
    Afinal ela pode ser fubanga, baranga, básica... mas burra não é. Veremos como vai ficar agora que a nossa Cinderela está bem acostumada no castelo e parece que está perdendo seus traços de gata borralheira, começando a se aproximar perigosamente de virar uma das irmãs interesseiras e fúteis. A recepção morna de um álbum cujo verdadeiro conceito é ser uma venda casada com o noivado da Lady Diana dos nossos dias não é coisa suficiente pra acabar com uma monarquia. Nossa regente conhece seus súditos, e mesmo se daqui a um tempo ficar claro que um número grande demais deles está insatisfeito, ela sabe que pode transformar o vestido de volta em trapos, a carruagem em abóbora e o príncipe em um monstro, como fez com todos os outros que vieram antes e que sempre jura que o próximo é o diferente. Mais cedo ou mais tarde o relógio vai bater a meia noite, e após o álbum sobre a felicidade dos recém-casados e a lua de mel, certamente vão vir também vários sobre a monotonia do casamento, os altos e baixos, a gravidez, as mudanças após a maternidade. E nós podemos condenar nossa princesa por querer viver seu conto de fadas diante dos olhos do mundo?  Ela é só uma garota... 

 

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