quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Resposta à escrita sobre a escrita

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"A única coisa certa é o futuro, o passado está sempre mudando"[1]

    Baseado no texto de um blog amigo que me atravessou mais do que eu esperava e em anos de conversas contínuas, eu resolvi desenrolar esse pequeno novelo de pensamentos. O texto falava sobre não conseguir escrever, ou mais precisamente, não conseguir organizar os pensamentos, experienciar eles de forma muito caótica durante a leitura (que, aprendemos, é a fonte da escrita), e também precisar "traduzir" seus pensamentos pra se comunicar, o que se torna muito cansativo então em algum ponto você só não faz.
       A partir daqui já são conclusões/interpretações minhas. 
   Essa descrição ressoou comigo em tantas camadas porque esse mesmo processo do não escrever também se torna não falar, não se importar, não agir, não viver. Se preservar é também se restringir, se isolar, se achatar, se esvaziar. Mas calma, vamos tentar manter um foco. E por falar em foco...
 
ATENÇÃO
(Esse texto não contém referências bibliográficas, infelizmente)
 
    Um dia desses vi um Tik Tok que dizia que a atenção é o recurso mais poderoso, e por isso ele está sendo explorado tão intensamente pelo capitalismo (algoritmos, publicidade e derivados) porque na verdade a atenção não é um recurso, ela é você. Ou melhor dizendo, você é sua atenção. Eu sei que também esse é um princípio do yoga graças a alguma leitura de 2019 (terá sido do Baghavat Gita?) Mas enfim, algo nas linhas de: "eu não sou um corpo, eu não sou uma mente, eu sou a consciência que tudo observa". Por outras vias, a gente também pode observar que isso se trata do processo de subjetivação; veja bem, sujeito não é a mesma coisa que indivíduo. Você nasce um indivíduo mas se torna um sujeito à medida que se torna consciente (de preferência elaborando pela linguagem) do seu próprio interior, ou melhor dizendo, nesse "se tornar consciente" você vai produzir uma imagem de si mesmo, o sujeito. Esse princípio é mais ou menos encontrado na psicologia lacaniana, de acordo com outro Tik Tok que eu nunca mais vou achar, e também na percepção da linguagem bakhtiniana.
    Mas infelizmente eu não tenho bagagem pra falar sobre essas áreas de estudo pra além disso. Já o Tik tok é uma ótima fonte de conhecimentos aleatórios, dispersos e rápidos, o que nos traz de volta ao nosso ponto inicial. A questão é:

 Como ser você mesmo se você não controla sua atenção? 

    É interessante perceber que geralmente pessoas que tem um interesse mais analítico em alguma coisa não necessariamente são "melhores" naquilo, e a curiosidade ou necessidade de analisar aquilo é porque elas não conseguem vivenciar aquilo de forma "intuitiva" ou "natural". Talvez essa seja a minha relação com a atenção e o aprendizado, bom, mas não sei se posso chamar de tão analítico assim. Tentando partir do "menor" ou mais concreto para o mais amplo, pra evitar que o texto se torne um sem-fim de descrições abstratas: eu sempre fui muito fascinado por leituras, filmes, mídias e aprendizados, ao mesmo tempo que sempre tive uma relação muito lacunar com essas mesmas coisas. [2]
 
    Outro gatilho para eu escrever esse texto foi uma outra postagem no mesmo blog, uma análise muito rica e bem escrita sobre a tragédia grega Hipólito de Eurípides e a série coreana Beyond Evil. Foi um texto que eu já tinha tido acesso antes, mas não lembrava de como era. Ao mesmo tempo em que eu me encantava pela análise, eu era atravessado por essas questões que são sempre uma constante na minha vida: Será que eu poderia dizer que li esse texto do qual eu não lembrava nada? Será que eu posso dizer que entendi? Será que eu posso dizer que vivi certas coisas então, já que é assim que eu me lembro de tudo? Vamos tentar falar sobre a dimensão linguística primeiro.
 
    Um princípio bem básico sobre Semiótica é que todo texto é ao mesmo tempo um objeto de significação e de comunicação. Isso quer dizer que ele possui um significado próprio e possivelmente subjetivo, mas também um contexto de produção; ele foi feito por alguém e para alguém(ns) em um certo lugar e época, e com certas intenções. Em outras disciplinas ou dependendo da sua afiliação teórica, um ou outro tipo de análise pode se sobressair. Aaahh, quantas guerras de papel já não foram travadas por causa desta ou daquela interpretação.
 
    Eu tenho gostado de considerar todos os tipos de texto como a materialização de uma conversa. É ingênuo achar que você pode ouvir só um trecho de conversa e sair espalhando o que você entendeu daquilo como verdade. Da mesma forma, você pode ter interpretações ou suposições sobre a fala de alguém (e isso pode ou não ter algum pé na realidade) mas existe um horizonte de coisas plausíveis e não plausíveis em cada situação... É estranho pensar que em uma cerimônia de casamento um "Eu te amo" pode significar "eu te odeio", pra citar um exemplo mais esdrúxulo. [3]
 
    Eu percebi que meu problema com me lembrar das coisas tem a ver com entender elas de fato, e o problema com entender tem a ver com juntar partes, fazer conexões entre o que vem antes e o que vem depois[4], ou até mesmo com coisas que eu já vi antes. Infelizmente todas essas coisas são elementares pra você interagir com textos (rindo de nervoso). Por esse motivo, há algum tempo eu passei a me referir a coisas das quais eu não lembrava como desconhecidas mesmo, o que já foi uma virada de chave, porque antes disso eu achava que era normal mesmo. Assistir e debater sobre filmes com uma frequência regular tem me feito perceber que as vezes eu tenho uma questão de processamento de informações e que primeiro eu tenho que ver todo o conteúdo uma vez pra depois realmente me focar em como as coisas se conectam, por exemplo, dentre outras particularidades. O que me leva a uma sensação de sempre estar “redescobrindo” as coisas
 
  Poderia descrever o meu processo tendo contato com as coisas como decodificação, não necessariamente leitura, não sempre. O mais engraçado é que não é que eu fosse ou seja incapaz de realizar uma leitura plena, eu só não sabia que não estava fazendo... Também não é como se eu fosse incapaz de elaborar sobre as coisas que eu lia, muito pelo contrário, mas muitas vezes o que eu pensava sobre era baseado em uma impressão superficial. Pra ler mesmo você não pode simplesmente “olhar” pra coisa, ou captar os estímulos sensoriais, você tem que tirar o produto da caixinha e desmontar pra ver o que tem no fundo e dentro igual uma criança faz. E isso se torna uma vivência, uma experiência, algo que é seu. [5] Poderia discorrer mais sobre como atualmente isso está sendo cada vez mais difícil, mas aí já é outro assunto [6]
 
    Eu acho que só recentemente percebi que escrever, ler e viver são processos relacionados e a forma como você faz um é a forma como você faz todos. Ou pelo menos os problemas que eu tinha em um eram os problemas que eu tinha em todos. Não só isso mas comecei a entender e aceitar que problemas são esses, e a entender um pouco melhor como trabalhá-los (viva a esperança). Caso eu não tivesse sido diagnosticado com TDAH há pouco mais de um ano, eu poderia facilmente apresentar esse texto a um psiquiatra (na verdade foi quase isso que eu fiz, mas era muito mais desordenado e caótico). Lembro que no papel A4 todo rabiscado de cima a baixo, um dos tópicos era que eu sentia que as coisas passavam por mim, e não que eu passava por elas. Acontecimentos, memórias, tudo... Uma das consequências mais dolorosas de não ter um diagnóstico era ficar ansioso por certas falhas que são inerentes a mim, ao mesmo tempo em que me culpava por não conseguir solucionar elas, já que claramente dava pra perceber que existiam problemas, então era só ter força de vontade pra resolver. 
 
    Existem ciclos viciosos torturantes quando você é capaz de falar sobre ou entender minimamente o que acontece com você, ao mesmo tempo em que você ainda tem uma deficiência, e isso não vai mudar com a força do pensamento.
Acho que um aprendizado mais recente tem sido me perdoar(?) por certas coisas e esse texto é um dos resultados disso. Eu sempre digo que eu penso em voz alta porque às vezes dentro da minha cabeça os pensamentos não tem peso nenhum então eu preciso falar eles pra poder sentir... Materializar as coisas é difícil mas extremamente benéfico. 
 
    Em outros tempos minha primeira reação aos textos que me deram gatilho seria "eu nunca vou conseguir escrever algo assim", então logo eu não tentaria. Ou, mesmo que tentasse, eu ficaria perdido entre meus sentimentos e a expressão deles; a intenção do texto e a composição dele. Eu costumo dizer que na minha cabeça as coisas acontecem muito rápido e logo se eu cheguei a uma conclusão, ela se torna óbvia então não dá tempo ou não precisa mais escrever sobre ela. (mentira, porque às vezes nem eu de fato entendi de primeira o ponto da associação que eu fiz). Pelo menos esse é o impulso inicial. Acho que é porque eu confundia elaborar com racionalizar (um fruto da ansiedade/impulsividade), que era só o que eu sabia fazer antes. Me surpreendi ao descobrir que eu fui capaz de escrever um texto, que foi muito proveitoso elaborar sobre meus sentimentos um pouco mais devagar do que na fala. Acho que minha grande dificuldade era a impaciência pra poder lidar com a organização das ideias.
 
    Ironicamente eu também aprendi em outra ocasião que ao escrever um texto, o "seu assunto" de fato está só no final, e na verdade a maior parte da extensão você vai estar reunindo e discutindo o que outras pessoas disseram, que te levarão lá no fim a chegar às conclusões que você chegou.  Pelo menos em um texto acadêmico, mas não deixa de se aplicar a esse caso, até porque tudo que fazemos é em referência a outras coisas. O "valor" do texto em si não está nas conclusões, mas em mostrar para o leitor como você chegou a elas; também a melhor bibliografia não conta se você não aproveita ela e mostra porque foi citada. Tem que estar bem costurado e amarrado. Não por acaso é um reflexo do processo de entendimento; você só produz a partir do que você entende.
 
    Dito isso, escolhi a frase inicial porque essa é a sensação que eu tenho com relação às coisas, sempre (re)lendo, (re)vendo e (re)entendendo eventos da minha vida. Se durante muito tempo esse processo foi marcado por uma sensação de estagnação e looping temporal a cada nova "olhada pra trás" em que eu via o que estava lá e devia ter sido visto o tempo todo, acho que agora tem se tornado um pouco mais leve à medida que eu entendo meus "defeitos" de fábrica. A grade questão era que de tempos em tempos eu dava uma “olhada pra trás” diferente mas nunca parecia estar no presente. Por incrível que pareça, escrever esse texto me deu essa sensação. Antes eu tentava estar no presente do passado (se é que isso faz sentido), acho que todo mundo já sentiu aquela sensação de ah meu Deus eu nunca vou ler todos os livros do mundo nem ouvir todas as músicas ou ver todos os filmes... Eu tava correndo atrás do tempo, como diz uma música que eu gosto [7]. Em relação à minha vida, eu sentia que eu sempre tava processando coisas de anos atrás e nunca as que tivessem rolando no presente momento, que eu não entendia o que eu tava fazendo com a minha vida (porque não entendia e nem estava fazendo). Agora eu percebo que quando eu resgato alguma coisa do passado (por exemplo alguma das milhares de obras recomendadas pra eu ler ou ver) eu encaixo ela no presente, porque eu não estou só consumindo aquilo passivamente, mas vivendo, entendendo tanto aquela coisa em si quanto ela no meu presente atual. E em parte por isso eu tenho demorado meses pra ler as coisas, mas eu sinto que é muito mais proveitoso. Em relação à vida, vamos dizer que criar é um bom sinal, olha só, eu até estou escrevendo.
 
    Uma pessoa muito sábia me disse que a História não é os eventos passados, mas sim o que se produz sobre eles. São as conexões que você faz que dão sentido ao que você ouve, vê, lê, pensa, sente e vive. Na história do Minotauro, Teseu sai do labirinto refazendo o novelo que ele deixou na ida, e eu gosto muito dessa imagética porque não importa o caminho que você escolher, o importante é que você saiba como ele te levou até onde você está agora. Sim, às vezes precisamos de muita, muita elaboração pra chegar em conclusões ou formulações bem pequenas, e se isso é verdade pra o conhecimento, em que realmente entender uma afirmação pode levar anos de estudo, é especialmente verdade pra mim, que sempre sinto que levo décadas pra entender as coisas mais óbvias. Esse texto foi uma tentativa de entendimento, um exercício, e também quis que a estrutura dele refletisse um pouco de como o caminho foi percorrido, espero que o novelo não tenha dado nó.
 
 

NOTAS DE RODAPÉ

 [1] Citação que vi por aí sem contexto, aparentemente o autor é um jornalista, olha só 

[2] (Nota, ao começar a esboçar esse texto, que eu primeiro explicitei a intenção e objetivos inciais, eu estava extremamente eufórico/agitado, agora já me noto mais calmo, de início eu tava escrevendo partes soltas ainda que tenha desenvolvido um pouco elas pra que não esquecesse quais eram os desdobramentos - coisa que me acontece com frequência apresentando argumentos -, mas depois que voltei ao início e fui tentar dar uma composição, uma ordem nas coisas, é como se antes eu estivesse na expressão do sentimento e agora eu estou na parte mais mental. Mais sobre isso daqui a pouco)

[3] (apesar de que talvez, na mesma situação até um "eu te odeio" pode significar "eu te amo".. sim eu sou romântico).

[4] Onde precisa não tem referência, mas editando me lembrei que o livro A linguagem secreta do cinema fala um pouco sobre como foi revolucionário pras pessoas entenderem certas convenções de montagem, de que se você tem uma tomada de alguém olhando por uma janela e logo em seguida alguém andando na rua, a primeira pessoa estava olhando pra segunda... 

[5] Notas sobre a experiência e o saber da experiência, Bunedía

[6] Preciso escrever um texto chamado “ A interpretação de texto não vai salvar o mundo - Bomba!”

[7] Chasing Time - Azealia Banks (sim)

3 comentários:

  1. Vc lembra, Renata? Quando a gente brincava de jogar RPG e basicamente o processo era responder os textos uns dos outros? Saudades. Vou me repetir, sou fã da tua escrita, e quero ler mais...

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  2. Vou ficar aguardando pelo texto "a interpretação de texto não vai salvar o mundo"

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