Caro leitor, esse texto é sobre minha insatisfação com o remake de Vale Tudo sendo exibido atualmente, mas antes de ir para os vale-tudos, me permita um pequeno parêntesis. Você talvez tenha percebido que o título desse texto referencia, com a sutileza de um coice, a obra de Hélio Oiticica (1968) que eu reproduzi acima. Mas caso não tenha percebido, não tem problema! Eu te explico, afinal não tem nada que um leitor ou espectador goste mais do que enfrentar uma palestra em tom maçante e na maioria das vezes pedante. 
Por algum motivo, a frase que "legenda" a bandeira me veio na cabeça enquanto pensava em escrever, e uma rápida pesquisa na Wikipédia confirmou minhas suspeitas: Foi uma obra da época da Ditadura, e se tornou emblemática após se exibida num show de Gil e Caetano após o qual os dois foram presos pelos militares, e pouco tempo depois, exilados. Na minha cabeça, essa obra ocupa um lugar meio equivalente a retratos do Belchoir, Karl Marx ou da Frida Kahlo, aquele mapa da América Latina de cabeça pra baixo, e semelhantes, em bonés, camisas, aqueles cadernos artesanais... Coisas que (assim como o constrangedor "eu sou resistência" da desquerida Solange na novela) tiveram (e até têm) um significado, mas que com o tempo foram sendo transformadas em ícones que sinalizam coisas cada vez mais vagas; esvaziados por pessoas como eu que não sabem a sua história. E caso você esteja indignado com o fato de eu reduzir tantas coisas das quais eu não conheço a uma leitura rasa e superficial e ainda querer te palestrar sobre, pelo menos eu não estou ganhando um salário gordo da Globo pra isso e nem exibindo o produto disso pra milhões de pessoas! Diante disso, e de uma campanha nada suspeita em que certos comentaristas passaram a jogar a culpa do fracasso da novela em cima de uma suposta "campanha de hate", acho que um verdadeiro ato de resistência é não poupar fogo na artilharia pra detonar esse circo sem palhaço que está sendo exibido na televisão.
    Vale Tudo é emblemática para a teledramaturgia - que como disse a Fernanda Torres, foi o que nos ensinou a olhar pra o nosso próprio país, nossa língua, nossa cultura, e nos viciar em nós mesmos. Mas também é um documento do Brasil "pós"-ditadura que nós nunca deixamos de ser. É revoltante ver uma oportunidade de trazer essas questões à tona ser tão empobrecida, o "mostra tua cara" virar um filtro de instagram, um amontoado de aplicações de botox homongêneas e inexpressivas. Vendo o resultado do remake, é impossível não pensar que a autora não escreve novelas, e que na verdade tem uma atitude extremamente pedante com o gênero, achando que precisa melhorá-lo, tornar sério e importante. A suposta vilã é a única personagem que tem alguma lógica, um mínimo de coerência, mas nem como vilã é boa porque a autora é incapaz de executar a marca registrada da personagem, que era dizer coisas abomináveis. Em vez disso, temos coisas como "ah, não suporto criança" - que ela acha que o público do sofá vai reagir com "Meu Deus, esse discurso childfree é tão perigoso e eugenista... a Odete realmente é muito fascista!". Como disse alguém no twitter, Gilberto Braga escrevia sobre a burguesia. Manoel Carlos o Leblon, e a Manu Days escreve sobre o DCE de universidades federais.
Essa discrepância se torna mais aguda vendo a repercussão de Tieta, uma novela também muito emblemática e marcante do seu tempo, que permanece atual, porque novamente, nós ainda somos o mesmo país. A novela foi cheia de temas polêmicos, mas inteligentemente tinha um recorte: uma cidade pequena com população atrasada e conservadora (como é a maioria do Brasil), que se choca com os progressismos trazidos à tona pela protagonista, um mote que gera inúmeras situações interessantes de se assistir. Tudo era explorado de forma sutil, na maioria das vezes com veia cômica, e ora ou outra alguns tópicos, como a transfobia, explicados de forma sincera e sensível. Ora, talvez tivessem pessoas na época que considerassem a novela ruim, básica, que haviam temas muito mais atuais e importantes pra se abordar do que a sexualidade (ou libertinagem), que quase sempre é o X da questão na cidadezinha de Santana do Agreste. Talvez houvesse muita gente dita intelectual que considerasse que toda essa questão sexual não passava de chamariz pra atrair o público desejoso de ver nudez e sexo depois de décadas de censura (e talvez isso também não deixe de ser verdade). Com certeza existia gente, como existe até hoje, que considere as novelas em si um subproduto. E em relação a isso eu só penso que, a novela não precisa ser pra todo mundo! Nenhum produto tem como ser. Mas parece que Vale Tudo de 2025 tem vergonha de ser uma novela, e busca sempre a abordagem mais cool e trendy, os termos e temas mais comentados nas redes sociais, e recai no erro de achar que a sua bolha é a realidade. É assim que temos Afonso falando sobre créditos de carbono e Odete rebatendo, com razão, que ninguém se importa com isso na hora de comprar uma passagem, e sim com o preço. E ainda é pra o espectador ficar do lado dele e apoiar esse lacre ambientalista.
    Não é exagero dizer que estamos vivendo nossa própria década perdida em relação à teledramaturgia, e sinceramente espero que o nosso Plano Real venha o mais urgente possível. E o mais engraçado dessa "crise" das novelas, não só em qualidade mas em repercussão e audiência, é que a fórmula delas já foi inventada desde o início e reproduzida com sucesso inúmeras vezes, adaptando-se e inovando sem perder a cara. Mas sinceramente parece que não estão satisfeitos com a roda como a gente já conhece, e insistem em querer inventar uma roda quadrada que gire do mesmo jeito. Quando as bordas quebrarem e depois de muito remendo chegarem em algo mais ou menos redondo, vão chamar de revolucionário.

 
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