Eu disse que ia escrever sobre esse jogo aqui, então lá vamos nós. 
    Esse texto já escreveu mais e melhor sobre o jogo The Longing, principalmente analisando o simbolismo e a filosofia por trás da obra. Eu gosto muito da análise simbólica, até porque é um jogo que tem trolls e cogumelos mágicos, e concordo que o Sombra não é um ser por si só, mas um desdobramento da mente do Rei, e que o reino subterrâneo representa o luto. Não por acaso, a única forma de acessar os finais que envolvem sair para a superfície exigem que o personagem enfrente a Angústia, que mais parece uma imagem espelhada dele mesmo. Eu amo como é basicamente uma fábula, não a toa tem muitas delas entre os livros da biblioteca. Mas enfim, vou falar sobre do mesmo jeito.
    O que eu realmente queria deixar registrado é o quanto jogar esse jogo, principalmente nos primeiros dias, pareceu com viver. Você é colocado num universo que já existia antes e que funciona independentemente de você. A partir daí, você pode não fazer nada e esperar os 400 dias passarem, ou você pode andar e explorar as cavernas. Quando você vai andando mais pra longe o Sombra diz que o rei não gostaria que ele andasse pra longe... você pode continuar ou voltar, são escolhas. E a esse ponto, você nem sabe se vai existir algum tipo de consequência/punição ou não, por ter desobedecido o rei. Também existem muitas coisas escondidas nas cavernas, muitas dicas que podem ou não levar a uma descoberta, e que se você não achar, você nunca nem vai saber que perdeu. 
    Existem coisas que muito provavelmente eu não teria descoberto sem ter lido na internet sobre. Não hoje em dia, pelo menos, talvez no máximo há anos atrás quando eu passava a tarde jogando Tomb Raider e tentando descobrir a saída pra um labirinto. Por exemplo, a primeira vez que eu peguei uma picareta eu fui correndo tentar quebrar o vidro da sala do tesouro, mas a picareta se estilhaçou, e eu tive que esperar mais um bom tempo até conseguir pegar a picareta na cachoeira branca. Decidi nunca mais mexer com isso (depois descobri na internet que existem 4 picaretas no jogo e vc precisa usar 3 delas pra quebrar o vidro). Mas em geral a sensação era de coisas e consequências desconhecidas o tempo todo.
Mas falando sobre a história, dentro do jogo existe uma série de livros, começando pelos que estão listados abaixo:

    O livro Thoughts é o "diário" do Sombra, mas fora isso, são títulos bem sugestivos sobre solidão/isolamento (Zaratrusta e Moby Dick), a fábula A guardadora de gansos, sobre troca de identidade (mais sobre isso no texto referenciado no início), e um livro de poemas.
    Com toda essa salada de coisas e muito tempo e espaços vazios, você começa a teorizar muito. Essa é uma das principais formas com que o jogo faz você interagir: procurando dar seus próprios significados pras coisas. Por exemplo, quando eu li a fábula da guardadora de gansos, sobre uma serva má que assume o lugar de uma princesa, e juntei com uma fala do Sombra, que às vezes ficava dizendo que "sonhou que era um rei", eu fiquei me perguntando se era isso que tinha acontecido no jogo. Terminou que não era isso que tinha acontecido, e na verdade essa fala era "profetizando" um dos possíveis finais: o Sombra entra num portal e é transportado pra um "sonho" onde ele está coroado e voando pra longe numa cegonha. Aparentemente essa é uma referência ao final de um jogo chamado Another World (1991) [do qual eu também nunca tinha ouvido falar] por colocar o jogador em um mundo onde você não sabia nada sobre. Esse jogo também é creditador por influenciar muitos criadores de jogos icônicos que vieram depois a ampliar o potencial de narrativa e emoção em jogos. A emoção de teorizar foi bem maior até do que a de descobrir a verdade, e além disso foi esse primeiro passo que me fez começar a desconfiar da palavra do Rei. 
    E por falar nisso, existe um poema especificamente sobre ele:
O poema termina com:
Ele suplica à sua sombra entorpecido
‘Ó, pequeno, não abandonai minha companhia,
Pois não pode uma alma essas cavernas deixar,
Mas um reles corpo poderia.’ 
    O poema no jogo é uma adaptação do poema romântico do século XIX Barbarossa, de Friederich Rückert. A lenda de Barbarossa, ou Frederico I, foi a maior inspiração para a criação do jogo: a lenda de que um rei adormecido voltará pra salvar o reino no momento de maior necessidade - qualquer semelhança com o Sebastianismo não é mera coincidência. No jogo, ao acordar o Rei, ele destrói o reino subterrâneo e só sobram ele e o Sombra.
      Pra além desse final e mais outros 3, o final em que o Sombra sai do reino e vai pra superfície é geralmente considerado o (único) final "feliz" do jogo, mas também existe muita gente que põe isso em xeque graças ao último verso do poema, argumentando que ele saiu das cavernas mas perdeu a alma no processo. A comprovação dessa tese seria de que ele parece ter um olhar "vazio"' nas imagens "pós-crédito". Já eu gosto da tese de que a parte que fala da alma se refere ao Rei, que já estaria morto, e que o Sombra ainda está vivo (já que ele pode morrer). Assim, ele seria um corpo com alma, não uma alma solta, e por isso ele pode sair das cavernas.  
    Não acho que o Sombra tenha perdido a alma ao sair das cavernas, e sim que ele sofreu uma transformação - o que é mais lógico ainda se você ver ali em cima o livro Metamorfoses. Aliás não só ele, mas a quantidade de fábulas e contos de fadas disponíveis no jogo que envolvem transformação de alguma forma [obs.: aquela fala icônica de Hannibal sobre mitologia grega e trocas de identidade]. Essa transformação, e a família que ele parece ganhar na superfície tem um preço: a destruição completa do mundo que ele conhecia e o pouco que ele cultivou lá embaixo, no reino subterrâneo.
    Uma coisa que eu observei não só em mim, mas em muitos depoimentos online é que quando você acaba o jogo, por mais que você saiba de antemão sobre o final, parece que só passando por ele é que realmente você sente o peso de todo o tempo que você passou pra chegar até ali. É estranho porque quando você está lendo um livro, por exemplo, você tem sim um papel ativo na construção da história, suas expectativas e interpretações são o que fazem a leitura acontecer e ganhar vida, mas em tese, você vive em um mundo separado da história (Isso se não for O mundo de Sofia - por falar em histórias ganhando vida). Já nesse jogo, eu sinto que é como se você fosse um pouco "leitor", um pouco "escritor" e um pouco "personagem" do quebra cabeça. Porque o sombra é um personagem, mas você não só assiste o que acontece com ele e projeta suas emoções, você agiu através dele, ele é um avatar seu. Acho que no final das contas, o que eu queria passar é que o final do jogo pra mim foi uma catarse, e acho que não vou saber desenvolver mais do que isso por enquanto.
    É muito fascinante.
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Eu não pude ficar sem pensar no clássico mito da caverna e o que acontece quando se sai de dentro dela. Alias eu gosto de interpretar que o certo ou o ideal não é sair da caverna no fim das contas, mas enfim. Adorei seu relato e a comparação com a leitura.
ResponderExcluirisso de sair da caverna é uma discussão que ficou com muita gente que jogou o jogo. No final das contas ele saiu e ficou livre, mas deixou todo o mundo dele e uma vida pra trás. E valeu a pena? Acho que é uma questão aberta que não tem como o jogo responder, porque ele termina, e porque vai ser uma resposta pra cada um
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