Eu não sei muito bem o que é essa postagem, mas vamos lá. Tudo começa com um texto (tudo sempre começa com um texto, não é mesmo?) que na verdade são fragmentos de outro texto, falando sobre internet, memória e (auto)preservação digital, e eu altamente recomendo seguir a trilha dos links. E aí esse assunto me lembrou o seguinte tweet que vi ontem quando entrei no app, resgatado pela mesma conta que postou:   
Fugindo um pouco da trama principal de investigação do livro, o trecho em questão é uma conversa de Adso (narrador-personagem) com Salvatore, um dos muitos monges na abadia em que os dois protagonistas estão visitando. Se tem uma coisa que esse livro tem com maestria são essas descrições verborrágicas, mais que exageradas, que quase evocam uma pintura.
Confesso que quando tava lendo essa parte, e principalmente algumas outras que falam de movimentos semelhantes, eu pensei "nossa, nunca que algo desse tipo aconteceria hoje em dia". Parecia muito distante que milhões de pessoas iam deixar suas cidades natais por causa de uma corrente ideológica. E aí só quando eu abri o tweet acima e comecei a ler os comentários eu fiquei uau... as pessoas realmente saíram de suas casas e "largaram tudo" por causa de uma corrente ideológica. Sem falar também das multidões de gente se reunindo na frente de prisões que receberam subcelebridades, enfim... Mas por outro lado eu tava certo porque muitos dos movimentos populares descritos anteriormente envolvem a pobreza, que foi toda uma questão durante a época em que a história se passa. Muita gente acreditava que devia renunciar s bens materiais e foram perseguidos por isso, porque obviamente a Igreja não queria perder poder. Isso eu não consigo mesmo imaginar acontecendo hoje em dia, porque estamos em outra época, outro espírito do tempo.
Salvatore é só um exemplo de um fenômeno muito maior, como fica claro na narração do próprio Adso. Uma resposta a coisas que aconteceram antes mesmo dele nascer e que ele nunca controlou, uma coisa meio João Grilo, sabe? Em outros momentos ele também menciona outros movimentos como cátaros, dulcinianos, etc. Coisas que vinham acontecendo há décadas ou séculos, e que ainda iriam durar um bom tempo (e culminar na reforma protestante, dentre outras coisas). Então Adso reflete sobre ele ser um "simples":
É importante lembrar que Guilherme, Adso e os outros monges são os intelectuais da época deles. E não necessariamente os intelectuais da época achavam que todas as fontes de conhecimento eram válidas, ou que o conhecimento deles deveria chegar a todo mundo, e se chegasse, não da mesma forma (o que rende debates interessantíssimos e cheios de nuances). Nem todos os religiosos são uma coisa só porque alguns dos próprios monges consideravam os outros religiosos sem ordem (padres e bispos) como ignorantes, porque viviam na vida prática das cidades e não na vida de contemplação intelectual em latim dos monastérios. Nem os religiosos eram uma coisa só, e nem muito menos o povo; aliás, eu toda hora me remeto ao meu ensino médio e como parecia que só existiam três pessoas na Idade Média: padres, camponeses e senhores feudais e reis. Aquele negócio dos três Estados, mas aí vc olha aquela descrição dos milhares de tipos de vagabundos e enxerga uma sociedade muito complexa.
Eu sinceramente não sei se o paralelo que fiz com o presente é coerente, e eu não quero igualar os movimentos e circunstâncias descrito no livro com os que ocorreram aqui no Brasil, talvez eu ainda esteja muito próximo de tudo pra conseguir discernir. Porque à medida que eu ia escrevendo o texto eu ia pensando que os movimentos populares da Itália do século XIII parecem muito.. "legítimos", e eu consigo ver claramente como eles são consequência de vulnerabilidades do povo. Ao passo que eu sei que o apelo populista do bolsonarismo é também fruto da vulnerabilidade do povo (que obviamente não vão ser os maiores beneficiados com ele); anos e séculos de desigualdade social, exclusão, falta de letramento e acesso a cultura, segurança, lazer e mil outras problemáticas. E apesar de tudo isso eu não consigo deixar de ver o 8 de janeiro (e tudo que ele representa) com desprezo e repugnância. Mas aí sou eu atribuindo juízo de valor a coisas que não cabem.
E pra me lembrar que as coisas não são tão simples assim, Salvatore descreve pra Adso um movimento ocorrido na cidade francesa de Tolousse, onde chegavam relatos maravilhosos das cruzadas, e um dia uma multidão de "pastores e humildes" resolveu se juntar pra combater os inimigos da fé, angariando um grupo cada vez maior e mais ousado, inflamado por falsas teorias. Ficaram conhecidos como pastorzinhos, e nas empreitadas, matavam todos os judeus que encontravam pelo caminho.
É tão interessante ver a tal da consciência de classe ser descrita de forma tão simples e elegante assim. Eu tenho certeza que já li essa frase falando que a elite sabe muito bem seus interesses (e consequentemente seus inimigos, como fala aí). Notem também que o trecho podia muito bem se referir à segunda guerra mundial, poucos anos antes do lançamento do livro. Ele é cheio dessas piscadas de olho pra o presente.
Mas outro ponto nessa discussão sobre os "simples" é que reconhecer que algo é consequência de circunstâncias históricas, e mais particularmente, reconhecer que uma massa de pessoas foi usada como massa de manobra em uma determinada ocasião, não quer dizer "absolver" essas pessoas do que elas fizeram. Depois desse trecho, Salvatore conta pro Adso um episódio que os pastorzinhos cercaram uma torre onde os judeus se confinaram, e vendo que iam ser derrotados, eles escolheram alguém pra matar todo o resto, pois preferiam morrer por um do próprio sangue. Quando abriram a torre esse judeu pediu clemência, mas os pastorzinhos alegaram que alguém que mata o próprio povo não merece viver, e passaram-no na espada. Mas batizaram as crianças, amém!
É muito tentador pensar nas pessoas que foram engolidas por esses movimentos como ignorantes e cegas, mas isso é um desserviço. Primeiro porque ignora as circunstâncias que levaram elas a isso, e segundo, porque releva elas a uma condição de vítimas que eu não acho realista. E acho que é um cuidado que o livro tem em colocar esse episódio dramático da torre, pra você não esquecer desse fato no meio da discussão. Assim como as circunstâncias válidas que levaram o movimento dos pastorzinhos a acontecer não justificam a morte dos judeus, também as circunstâncias brasileiras não justificam a tentativa de golpe. E não só não justificam, mas de forma bem parcial e sem nenhuma neutralidade, eu não consigo e nem quero relevar. Porque esse tipo de comportamento de multidão/seita, que aconteceu no 8 de janeiro e de certa forma vem desde o surgimento do bolsonarismo, libera um lado violento, cruel e mesquinho nas pessoas que é muito nojento, então eu não aceito que agora que a onda virou um pouquinho só as pessoas aleguem que não era bem assim e venham com a história de que eram "senhorinhas com a Bíblia na mão". Eles não eram crianças sendo hipnotizadas pela melodia do flautista de Hamelin, eram no máximo os ratos. Eles passaram anos falando em matar, fuzilar, exterminar, quebrar, destruir, prender, torturar, estuprar, queimar, acabar, e eu odeio o fato de que a maioria dessas pessoas voltou às suas vidas normalmente, e uns 10%, se muito, ainda estão cumprindo pena, uma boa parte em prisão domiciliar. Ah se a ditadura que elas tanto reclamam existisse mesmo. E eu sei que muitos dos verdadeiros mandantes não foram e nem vão ser indiciados em algum inquérito, mas eu quero que todos os envolvidos de alguma forma sofram o máximo possível, e se calhar de ser o gado que foi massa de manobra, pois problema deles.
    Na história de Salvatore, o movimento dos pastorzinhos só acabou quando começou a ameaçar o poder do rei. Aliás, antes disso o próprio rei tinha tentado proibir a morte dos judeus, obviamente não por caridade mas porque isso podia ameaçar o comércio, mas a proibição não surtiu efeito, graças aos séculos de doutrinação que as pessoas tinham contra os "inimigos da fé", então foi preciso enforcar dezenas de pastorzinhos pra que o movimento não ficasse grande demais, e sabe-se lá quem eles iriam querer atacar depois dos judeus.
Na introdução dessa edição tem uma frase do Umberto Eco dizendo que eles tinham saído de um período em que existia uma pressão pra escrever sobre o presente, e ele se sentiu livre pra lançar esse livro. Que engraçado que ao escrever essa história medieval ele tenha conseguido falar tanto sobre o presente; e infelizmente sobre o futuro. Não é querendo ser o homem subterrâneo que se achava melhor e mais inteligente do que todo mundo, mas é impossível não observar certos padrões e perceber como infelizmente as pessoas se guiam por coisas muito simplistas mesmo, e isso de certa forma é inevitável; olha aí o que tá acontecendo em plena "era da informação". No capítulo logo depois desse, Adso tem uma conversa em que Guilherme, o mestre dele, tá falando sobre movimentos heréticos, e ele explica que os simples não escolhem a heresia a qual se juntam. Não é como se as pessoas realmente parassem pra pensar na ideologia na qual elas estão aderindo, elas vão aderir ao que chegou até elas que vagamente prometa alguma coisa, faça elas se sentirem incluídas ou importantes, deem um propósito. Isso era real no século XIII e é real agora.
E é uma sensação quase sufocante ficar pensando como todas as coisas são complexas e nunca param de acontecer, porque obviamente a gente parou de acompanhar a história no livro, o movimento acabou mas outras coisas vieram depois. Assim como agora a gente não vai ver o fim de tudo que tá acontecendo agora, depois tem outra coisa, e outra coisa, e uma hora você morre mas as coisas continuam acontecendo.
Eu não sei como encerrar esse texto então fica a recomendação, leiam O nome da rosa, e se você quiser um aperitivo, leia o capítulo que eu citei aqui: Terceiro dia: Sexta. Ele é curto, não tão envolvido na trama e tem essa discussão sobre contexto de uma forma não tão densa e extensa quanto em outros momentos.

 
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